Hoje não há dia em que a imprensa não fale em corrupção. Há corrupção para todos os gostos. É lavagem de dinheiro, são as grandes corrupções das obras públicas, a corrupção nas autarquias, as pequenas corrupções, quer no setor público, quer no setor privado. É a corrupção desportiva, empresarial e política. É corrupção em todos os tamanhos, cores e feitios.
O engraçado da corrupção é que são sempre os outros. Nunca, ou muito raramente, quem fala de corrupção assume que também ele já pode ter caído em tentação.
Mas para sabermos qual é a raiz da corrupção, temos que começar por defini-la. Afinal o que é corrupção? Uma definição resumida poderia ser: é a utilização de recursos que estamos mandatados para gerir, mas que não nos pertencem, para obter ganhos pessoais.
É ainda necessário dizer que normalmente a prática da corrupção tem quase sempre dois agentes, o corruptor e o corrompido. A discussão de qual dos dois é melhor é fútil. Até porque muitas vezes o corrompido é o agente ativo, oferecendo a oportunidade. Outras vezes é o corruptor que vê a oportunidade e avança.
Mas voltemos à raiz da corrupção. É fácil entendermos que os princípios éticos tentam criar um contexto pacífico, justo e de igualdade de oportunidades. Estes princípios éticos foram elaborados após a experiência de períodos de grande anarquia e corrupção vividos pela humanidade.
Mas estes códigos éticos têm um pressuposto histórico. Só apareceram quando, nós humanos, deixamos de ser caçadores e coletores e nos sedentarizamos. É com a sedentarização que se define a propriedade privada. E é com a sedentarização que formamos comunidades maiores do que na forma de vida anterior. Ao nos fixarmos num espaço delimitado tornou-se necessário gerir duas realidades que anteriormente não existiam, a coisa pública e a coisa privada.
Quando éramos caçadores coletores não havia nem coisa pública e nem coisa privada. Os grupos humanos eram relativamente pequenos, constituídos por todos os tipos de pessoas, crianças, adolescentes, adultos e velhos. Andavam em grupo a caçar e a colher alimentos. Moviam-se devagar dentro de uma área conhecida. Não havia um líder. Havia vários. Havia o líder da caça. Havia o líder dos instrumentos de caça, o da coleta de frutos, etc. Isto é, a liderança era de conhecimento sobre determinado tema e a moeda de troca era o que cada um contribuía com o seu conhecimento para o equilíbrio e o bem-estar do grupo.
Éramos portanto uma miríade de pequenas sociedades coletivas que nem sequer possuíam bens. Portanto não havia corrupção, porque não havia a coisa pública nem ninguém possuía nada individualmente, a não ser o seu conhecimento sobre determinada necessidade e que era utilizado para suprir as necessidades individuais e coletivas. Ou seja, não havia as sementes que fazem florescer as árvores da corrupção.
Com o processo de sedentarização veio a agricultura e tudo isto mudou. A agricultura, por si só, necessita de um espaço delimitado. Aparecem assim os primeiros sentimentos de propriedade. O pedaço de terra em que alguém se esforça para produzir os alimentos que come. Surge então o sentimento de ser o dono daquele pedaço de terra e da produção conseguida com o seu próprio esforço. Começa assim o individualismo.
Com a sedentarização apareceram então novas necessidades jurídicas. A primeira e mais importante foi definir a propriedade. Depois os grupos transformaram-se em tribos e aumentaram de tamanho. Iniciaram-se as disputas por propriedade e por justiça nas trocas. Os que sabiam fazer instrumentos e não sabiam plantar, colher ou criar animais, tinham que trocar o que produziam por alimentos. Aos poucos a sociedade foi-se especializando e era necessário resolver as disputas. Surgiram os chefes, que foram a primeira forma de governo, e que resolviam as disputas.
Chegamos então ao ponto. A raiz da corrupção é a coisa pública. Sendo mais preciso, é a coisa coletiva, que pode ou não ser pública. Uma empresa é uma coisa coletiva, que tem um governo e não é pública. Estamos então na situação em que há pessoas que, por algum meio, têm o poder de gerir, mas não têm a propriedade. É neste momento que surge a oportunidade da corrupção, pois:
- Alguém com poder mas sem a propriedade, pode utilizar esse poder para obter vantagens a seu favor.
E é sempre nestas condições que surge a corrupção. Por exemplo, um alto funcionário, quer seja deputado, governante, autarca, administrador de empresa cotada na bolsa ou de empresa estatal terá sempre, durante o seu mandato, a oportunidade de exercer o poder e beneficiar desse exercício para obter vantagens pessoais ilícitas. Um agente de autoridade, seja polícia, fiscal ou árbitro desportivo está numa posição em que pode exercer o seu poder em troca de vantagens pessoais.
Como é fácil de perceber, não haverá lei nem policiamento capaz de escrutinar todas as possíveis oportunidades de geração de atos corruptos. A solução não passa por mais leis, nem por mais supervisão, nem por mais polícia. A solução passa por facilitar o entendimento a todos os cidadãos, se há ou não corrupção em determinado atuação ou momento de gestão ou governação. Isto é, haver transparência.
O que estou a dizer é que a legislação complexa e confusa funciona como um acelerador, como adubo da corrupção, pois para se entender que há algo errado, é necessário ter conhecimento muito detalhado da lei, o que somente alguns terão. E não é segredo para ninguém que em Portugal o quadro legal é complexo e confuso. Aliás, até proponho que alguém faça um estudo em que correlacione a complexidade do quadro legal com os níveis de corrupção de cada país. Desconfio que vou ter razão.
Mas então se a solução não são mais leis e mais polícia, qual é então? É haver transparência. E a transparência não se faz com mais leis. Faz-se com menos. Quanto mais fácil for para o cidadão comum perceber as regras do jogo, mais transparência haverá, já que será mais fácil para qualquer pessoa escrutinar o sistema. Para ser mais fácil entender o sistema as leis tem que ser poucas, simples e fáceis de entender.
Sim sei que primamos por ter toneladas de leis e que muitas vezes há leis conflituantes. Sim sei que há códigos e leis, para tudo e para nada. Sim sei que a cada vez que há um problema os nossos legisladores entendem que resolver o problema é criarem logo mais leis para o caso específico, o que nos leva à situação atual. Sim sei que estou a pedir o impossível face à nossa tradição legislativa e comportamental.
Mas ter a ambição de contribuir para uma sociedade melhor, por enquanto, ainda não é crime. Certo, certo é que nunca será um ato de corrupção!